O Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro deu início, nesta quarta-feira, 5 de novembro de 2025, ao projeto Democracia Além das Grades, uma iniciativa inédita no estado que pretende garantir o direito ao voto a presos provisórios e adolescentes internados nas Eleições Gerais de 2026Rio de Janeiro. A reunião de lançamento, conduzida pelo vice-presidente e corregedor do TRE-RJ, Cláudio de Mello Tavares, reuniu representantes do Ministério Público, da Defensoria Pública, da Secretaria de Administração Penitenciária do Estado e da Ordem dos Advogados do Brasil. O objetivo? Transformar um direito constitucional em prática real — mesmo atrás das grades.
Um direito que a Constituição já garante, mas a realidade esquece
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 15, inciso III, é clara: só perde o direito de votar quem foi condenado com sentença transitada em julgado. Ou seja, quem ainda aguarda julgamento — e por isso é considerado inocente até prova em contrário — não pode ser privado de sua cidadania política. O Tribunal Superior Eleitoral já confirmou isso nas eleições municipais de 2024: mais de 6 mil presos provisórios em todo o Brasil votaram para escolher prefeitos e vereadores. Mas no Rio, até agora, esse direito era teórico. A infraestrutura, a logística e o medo de riscos de segurança impediam a concretização.Agora, o TRE-RJ quer mudar isso. "O voto não é um privilégio. É o alicerce da democracia", disse o desembargador Cláudio de Mello Tavares. "Se a lei diz que eles têm direito, nossa obrigação é fazer isso acontecer, mesmo que seja em uma cela. A democracia não pode escolher onde exercer seu poder. Ela precisa estar em todos os lugares — até onde a sociedade decidiu esconder as pessoas."
Critérios rígidos: segurança primeiro, mas sem excluir
O projeto não será feito de qualquer jeito. As unidades que participarão do piloto serão escolhidas com critérios rigorosos: capacidade de abrigar seções eleitorais sem risco, número de presos provisórios com título eleitoral regular e, acima de tudo, ausência de vínculos com facções criminosas. "Não vamos colocar mesários em unidades onde há risco de violência organizada. Isso não é discriminação — é responsabilidade", explicou a secretária de Administração Penitenciária, Maria Rosa Nebel.Além disso, os mesários serão recrutados entre servidores da própria rede penitenciária, agentes da Defensoria e voluntários da Ordem dos Advogados. A ideia é evitar a estigmatização e garantir que o processo seja conduzido com profissionalismo. Já foi definido que os votos serão contabilizados em urnas eletrônicas isoladas, com transmissão criptografada e supervisão da Justiça Eleitoral. Nada de papel. Nada de riscos de fraude. Tudo digital, seguro e auditável.
Outros estados já caminham — e o Rio vai além
O Tribunal Regional Eleitoral do Paraná foi pioneiro, implementando seções eleitorais em presídios desde 2022, após um acordo com a Secretaria de Segurança Pública e o Tribunal de Justiça local. O presidente do TRE-PR, Wellington Emanuel Coimbra de Moura, afirmou então: "A democracia não é um privilégio de quem está solto. É um direito de todos que não foram condenados."O TRE-SP também regulamentou, em abril de 2025, a possibilidade de seções eleitorais em unidades prisionais — incluindo até servidores penitenciários como eleitores. Mas o Rio, pela primeira vez, está unindo todas as pontes: Justiça, segurança, defesa pública e governo estadual. É um modelo de colaboração que pode servir de referência nacional.
O calendário é rígido — e o prazo já começou
Quem quiser votar precisa estar inscrito até 4 de maio de 2026. É o prazo final estabelecido pela Lei nº 9.504/1997 e pela Resolução do TSE nº 23.659/2021. Quem não tem título, ou está com o título cancelado por não votar em três eleições consecutivas, precisa regularizar a situação — e o TRE-RJ vai montar equipes itinerantes para fazer isso dentro das unidades. "Não podemos deixar ninguém para trás por burocracia", disse o defensor público Marcos Paulo Santos. "Muitos desses jovens não sabem nem que têm direito a votar. Nossa missão é informar, ajudar e garantir que o voto chegue até eles."Um movimento contrário no Congresso
Mas nem tudo é avanço. Enquanto o Rio se prepara para ampliar a democracia, a Câmara dos Deputados aprovou, em votação expressiva, um projeto de lei que busca proibir o voto de presos provisórios. Apresentado pelo deputado Marcel van Hattem (Novo), o projeto foi aprovado por 349 votos a 40. A justificativa? "Proteger a integridade do processo eleitoral contra influência de facções."Contudo, juristas e defensores dos direitos humanos alertam: isso é um retrocesso. "A presunção de inocência é um pilar da nossa justiça. Se você não foi condenado, não pode ser punido politicamente", diz o professor de direito constitucional Ricardo Ferreira, da UFRJ. "O que o Rio está fazendo é corrigir uma falha histórica. O que o Congresso está tentando fazer é transformar uma medida de segurança em uma violação de direitos."
O que vem a seguir
Nos próximos meses, o TRE-RJ vai publicar o edital com as unidades selecionadas, o cronograma de alistamento e os locais de votação. A expectativa é que, até outubro de 2026, pelo menos 1.500 presos provisórios e adolescentes internados no estado possam exercer seu voto — e que isso se torne um modelo replicável em outros estados.Se tudo correr como planejado, em 2026, uma cela no Rio de Janeiro poderá ser, pela primeira vez, uma seção eleitoral. E isso não é só um feito técnico. É um ato de reconhecimento. De que, mesmo quando a sociedade decide prender alguém, ela não pode prender sua cidadania.
Frequently Asked Questions
Quem pode votar no projeto 'Democracia Além das Grades'?
Podem votar apenas presos provisórios — ou seja, pessoas ainda sem condenação definitiva — e adolescentes internados em unidades educacionais. Não se aplica a condenados com sentença transitada em julgado. É obrigatório ter título eleitoral regular e estar inscrito até 4 de maio de 2026. A inscrição pode ser feita dentro da própria unidade, com apoio da Defensoria Pública.
Por que unidades com facções criminosas serão excluídas?
A exclusão se dá por razões de segurança, não por discriminação. A presença de líderes de facções pode gerar pressão, intimidação ou até tentativas de manipulação do voto. O TRE-RJ prioriza a integridade do processo eleitoral e a proteção dos mesários. Isso não significa que presos de facções não têm direito — apenas que o voto não será realizado em ambientes onde o risco de violência ou coação é alto.
Como será garantido que o voto não seja influenciado por outros presos?
As seções eleitorais serão montadas em áreas isoladas, com monitoramento por câmeras e supervisão de servidores da Justiça Eleitoral. Os votos serão registrados em urnas eletrônicas com criptografia e transmissão segura. Mesários serão treinados para identificar qualquer tentativa de coação. Além disso, o sigilo do voto é garantido por lei — qualquer tentativa de interferência é crime eleitoral, com pena de até 4 anos de prisão.
O que acontece se o projeto for barrado pela Câmara?
Mesmo com a aprovação do projeto de lei na Câmara, ele ainda precisa ser votado no Senado e sancionado pelo presidente da República. Enquanto isso não ocorre, a Constituição Federal e as decisões do TSE continuam válidas. O TRE-RJ pode, e provavelmente vai, continuar com o projeto. A Justiça Eleitoral tem autonomia para garantir direitos constitucionais, mesmo contra pressões políticas.
Por que o voto é obrigatório para maiores de 18 anos, mas presos provisórios podem não votar?
A obrigatoriedade do voto não se aplica se o eleitor não tem condições de exercê-lo — como é o caso de presos sem acesso a infraestrutura eleitoral. O projeto do TRE-RJ justamente corrige essa lacuna. Não se trata de isentar o preso provisório da obrigação, mas de criar as condições para que ele cumpra seu dever cívico. A lei não exige que todos votem — exige que todos tenham a chance de votar.
Quais são os próximos passos do TRE-RJ?
O tribunal vai publicar em janeiro de 2026 a lista das unidades selecionadas, com base em diagnósticos de segurança e infraestrutura. Em fevereiro, começam as campanhas de alistamento dentro das prisões. Em março, serão treinados os mesários. E até abril, todas as urnas já estarão instaladas e testadas. O objetivo é garantir que, em outubro de 2026, o voto desses cidadãos seja tão legítimo quanto o de qualquer outro eleitor no Rio.